“A vida só se compreende mediante um retorno ao passado, mas só se vive para diante.” Soren Kierkegaard
Os pensadores antigos discutiam, muitas vezes, questões que estavam além de sua época, pois procuravam dentro de si resposta para as mais variadas perguntas. Os interesses, ambições e objetivos sempre foram os mesmos em discurso, ao bem da ciência e da sociedade, porém a manipulação e a alienação sempre fizeram parte do mesmo contexto.
A psicologia mentalista ganhou espaço em meio à sociedade a partir das percepções do médico vienense Sigmund Freud que fora treinado a diagnosticar e prognosticar seus pacientes, até aparecer os primeiros casos de somatização. Devia ser frustrante para os médicos da época não saber diagnosticar tais pacientes que se queixavam de sintomas em lugares diversos sem relação ou sentido aparente. Freud foi além escutando e tratando seus pacientes de forma diferenciada, mas ele ainda era um médico programado para decodificar patologias e prescrever remédios e/ou atitudes curativas.
Os filósofos gregos –notadamente Sócrates, Platão e Aristóteles- afirmavam ser o distúrbio mental resultante de processos de pensamento desordenados. Prescreviam o método persuasivo de cura por meio da força das palavras (SHUTZ; SHUTZ, 2006, p.349).
A medicina é uma área do conhecimento que, de forma generalista, tem como objetivo a conservação e restauração da saúde. Freud fez um belo casamento entre medicina e filosofia para criar a psicanálise que enfrentou críticas severas por não atender todas as exigências acadêmicas para ser aceita como uma ciência natural.
A Psicologia se desenvolveu em diversas linhas, e todas traziam a herança de tratar a patologia, que não pode ser negada e precisa da devida atenção. A questão é que estamos fazendo, ensinando e aprendendo uma psicologia neurótica que está quase sempre, anuindo com a psiquiatria em busca de novas psicopatologias, procurando padrões em sintomas que permitam enquadrar os indivíduos. Que entendamos e discutamos o CID 10 e o DSM IV, mas daí a perder uma possível originalidade por vislumbrar outro viés é se render a praticidade e falta de comprometimento com a verdade, sintoma da pós-modernidade. Não são as doenças que definem os indivíduos, mas sim os indivíduos que definem as doenças. Bohoslavsky (1977) explica que a psicoprofilaxia pode ser entendida como toda atividade que, a partir de um plano de análise possa empregar recursos e técnicas que tendam ao desenvolvimento das potencialidades do ser humano, seu amadurecimento como indivíduo e, finalmente, sua felicidade. Ele ainda enfatiza:
... seria conveniente que além da função psicoterapêutica, os psicólogos compreendessem a enorme diversidade de campos que requerem nossos serviços profissionais, e que somente nós podemos atender (BOHOLAVSKY,1977, p.11)
O psicólogo norte americano John Shotter cita Popper em seu artigo “O que é ser humano” ressaltando a distinção que ele fez do mundo natural e do mundo cultural. Shotter explica que existe o mundo natural, o mundo dos estados psicológicos das pessoas, e as partes do mundo natural que são produtos da mente humana, essas definições são chamadas de mundos 1, 2 e 3, e teriam surgido exatamente nessa ordem segundo Popper. Assim temos na sequência a natureza, o homem e a cultura, sendo que desses três Popper dá uma atenção especial a cultura quando ele cita:
Um dia teremos que revolucionar a psicologia ao olharmos para a mente humana como um órgão para interagir com os objetos do terceiro mundo; para entendê-los, contribuir para eles, participar neles; e para fazermos com que tenham importância no primeiro mundo. (POPPER, 1972 p.156).
Então vemos em Popper um utopista que visa uma realidade onde o homem se relacionará com a cultura para entendê-la, produzi-la, participar desta e fazer tudo isso de forma ecológica. O interessante dessa percepção é que essa revolução já é explícita em outras áreas do saber, pois como Bené Fonteles cita em seu manifesto “Antes arte do que tarde” escrito para a ocasião do Encontro Mundial Arte e Identidade Cultural na Construção de um Mundo Solidário/ São Paulo, abril-maio de 2001:
... eu desejo uma sabedoria que abandone a pretensão acadêmica de querer salvar o Mundo com o projeto inútil do acúmulo do conhecimento, em vez de querer a redenção da Terra pela nudez imensa da simplicidade do saber popular e natural.
O que Popper e Bené oferecem é psicoprofilaxia, pois é estar no mundo e para o mundo sem necessariamente responder as exigências massificadas de um contexto pós-modernista onde o ter é mais importante que o ser, e isso não se limita apenas a uma concepção monetária ou materialista, estas formas de ter, além do conhecimento, entre outras categorias, se interelacionam com o status que traz arraigado em si uma infeliz hierarquia cultural.
Falando de revolução não poderia deixar de citar um grande ícone do cinema brasileiro que até hoje está além do nosso tempo e que era o que era muito provavelmente pela atenção que ele dava a lógica dos seus sentimentos. O antropólogo Darcy Ribeiro discursou no enterro de Glauber Rocha, em 1981 o seguinte:
Sua breve vida. Sem pele, com a carne exposta, capaz de gozo decerto num é Glauber!? Mas mais capaz de dor, da nossa dor. Uma vez, eu não vou esquecer nunca, Glauber passou a manhã abraçado comigo chorando, chorando, chorando compulsivamente. Eu custei a entender. Ninguém entendia que Glauber chorava a dor que nós devíamos chorar, a dor de todos os brasileiros. O Glauber chorava as crianças com fome, o Glauber chorava esse país que não deu certo, o Glauber chorava a brutalidade, o Glauber chorava a estupidez, a mediocridade, a tortura e não suportava, chorava, chorava, chorava. Os filmes do Glauber são isso, é um lamento, é um grito, é um berro.
Essa herança que fica de Glauber. O que fica de Glauber para nós: a herança de sua indignação, ele foi o mais indignado de nós, indignado com o mundo tal qual é, assim, indignado porque mais que nós também Glauber podia ser o mundo que podia ser. Que vai ser Glauber, que há de ser.
Glauber viveu entre a esperança e o desespero, como um pendulo, louco.
O cineasta Silvio Tendler deixa o registro: “Cada um tem um Glauber dentro de si”.
E me referindo a esse último trecho do discurso de Darcy, divago. Ainda bem que temos a esperança para contrapor o desespero, porém, se não fosse o desespero talvez não precisássemos da esperança. Dizem que a esperança é a última que morre. Depois que ela morrer certamente teremos coisas mais importantes a tratar.
Übermensch, psicoprofilaxia é educar, é – como diria a nova psicologia que Shotter cita- aumentar os poderes pessoais de ação responsável, aumentar não apenas o controle das pessoas sobre outras, mas o controle sobre seus próprios modos de vida. Aceitando o inevitável e indo de encontro a si mesmo.
Referências:
BOHOSLAVSKY, R. Orientação Vocacional: A Estratégia Clínica. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
SHUTZ,D.P.; SHUTZ,S.E. Historia da Psicologia Moderna. São Paulo:Thomson, 2006.
TENDLER, S. Glauber o filme, labirinto do Brasil [Filme-DVD] Produção de Silvio Tendler. Rio de Janeiro. 2003 DVD/NTSC, 98min. cor. som.
ILÁRIO E. A Bioética frente ao irracionalismo na pós-modernidade. Bioética v. 9, n. 1, p. 13-23, 2001
SHOTTER J. O que é ser humano? Reconstructing Social Psychology. Harmondsworth: Penguin Books, pp.53-71, 1974